INTRODUÇÃO
O
ÁPICE DA TEOLOGIA
“Havendo Deus outrora
falado muitas vezes e de muitas maneiras aos pais pelos profetas, a nós
falou-nos nestes últimos dias pelo Filho”. (Hb.1:1)
O Velho Testamento
apresenta uma revelação progressiva de Deus na medida que seu povo ia andando
com ele, ou mesmo quando deixava seu caminho. Em todas as situações da história
de Israel, Deus veio se revelando paulatinamente. Nesse percurso, vários nomes
foram usados para Deus. Cada um representava o nível de revelação alcançado.
Tais experiências vinham ocorrendo juntamente com a preparação de uma linhagem
especial. Deus chamou Abraão e dele formou um povo inumerável. Dentre esse povo
foi separada uma tribo : Judá. Nessa tribo foi escolhida uma família : a casa
de Jessé. Desse tronco veio o ápice da revelação de Deus na história da
humanidade. Da raiz de Jessé veio Jesus, o Verbo Eterno de Deus. Jesus Cristo é
o ponto máximo da manifestação de Deus aos homens.
No passado, o conhecimento divino se dava
através de visões, mensagens, sonhos, etc. No Novo Testamento, Deus vem em
pessoa humana, em carne e osso, para que o homem o conhecesse como nunca antes.
Jesus é o resplendor da glória do Pai e a expressa imagem da sua pessoa
(Hb.1:3). Muitos não tiveram o privilégio de estar ao lado de Jesus durante sua
vida terrena. Para esses, entre os quais estamos nós, Deus providenciou que a
vida, a obra e a mensagem de Jesus fosse registrada, afim de que, por meio de
tais registros viéssemos a crer nele e conhecê-lo experimentalmente. Tais
escritos são os Evangelhos. Neles temos o glorioso testemunho daqueles que
viram e tocaram na Palavra da Vida (I Jo.1:1).
Nesse estudo,
procuraremos focalizar, de modo sucinto, a teologia dos quatro evangelhos. Nos
dedicaremos a extrair a visão teológica de cada um de seus escritores, de
maneira que possamos aprender um pouco mais sobre a luz que a encarnação do
Verbo lançou sobre a teologia bíblica.
A TEOLOGIA DE MATEUS
O primeiro evangelho
desenvolve uma teologia da história: Deus faz história com o homem de
maneira única e decisiva em Jesus, Cristo e Filho de Deus. Ao cumprir a Aliança
por total submissão à vontade de seu Pai, Jesus abre o futuro da Igreja e do
mundo à realização das antigas promessas; transforma o presente dos homens em
esperança para sempre.
Mateus apresenta,
intimamente ligados, o itinerário terreno de Jesus revelando-se pouco a pouco
às multidões enquanto formava seus discípulos, e a construção progressiva de
sua Igreja, comprovação para o mundo da presença do Reino dos Céus.
1 - JESUS CRISTO, SENHOR DA
IGREJA
O Ressuscitado anima a
sua comunidade com sua presença e atuação. Dela é efetivamente, o “Senhor”,
realizando a primeira profecia consignada no evangelho... “e o chamarão com o
nome de Emanuel, o que traduzido significa : Deus está conosco” (1:23).
MESSIAS DE ISRAEL
Jesus é o Messias
esperado por Israel e anunciado pelas Escrituras. Mateus o afirma claramente
diante do particularismo judaico exacerbado após a queda de Jerusalém. Desde o
primeiro capítulo (1:1,16,18 16:20 27;17), Jesus é chamado “Cristo”, quer dizer,
“ungido” de Deus. Sua genealogia estabelece sua filiação de Davi e de Abraão.
Por se o Messias em quem confirma a longa história das benevolências divinas,
compete-lhe a última palavra; ele é o Salvador que Moisés prefigurava.
O evangelho da infância
explicita, com o auxílio dos profetas, a maneira como Jesus realiza as
esperanças judaicas; Mateus atribui-lhe os títulos messiânicos tradicionais.
Segundo o anúncio profético, ele nasce em Belém, cidade real; é verdadeiramente
“Filho de Davi” (9:27 12:23 15:22
20:30-31). Mas Mateus rejeita o conceito de um Messias nacionalista que
seus contemporâneos criaram. A fim de corrigi-lo, apela para a figura do
“Servo” de Deus (8:17 12:18-23),
extraídas de Isaías (Is.42:1-4); ele é rei (21:5 2:2
27:11,39,42). De toda maneira, são as Escrituras que, incessantemente,
autenticam sua identidade.
O ISRAEL REALIZADO
Ao ressaltar a
realização em Jesus das expectativas messiânicas alimentadas pelo povo eleito,
Mateus determina dois tempos da comunidade da salvação: o Israel realizado e o
Israel irrealizado. Através do evangelho cresce, de um lado, uma tensão entre
aqueles que procuram Jesus e prendem-se a ele - multidão e discípulos - e de outro, os “escribas e fariseus”,
intérpretes titulares das Escrituras que, através dos “sumos sacerdotes e
anciãos”, representantes oficiais do povo , são notórios adversários de Jesus.
Este denuncia sua hipocrisia, não para rejeitá-los mas para fazê-los
compreender sua recusa da realização que os pagãos vão acolher.
A inversão aparece tanto
no início como no termo do evangelho: magos, astrólogos idólatras, descobrem o Rei
dos Judeus (2:2), enquanto o rei Herodes quer matá-lo (2:16); o pagão
Pilatos tenta agraciar Jesus (27:21-24), enquanto o povo da aliança recusa
reconhecê-lo não sem chamar sobre si seu sangue redentor (27:25). Assim se
consuma na Paixão o que a infância anunciava.
A parábola dos vinhateiros homicidas o indica com clareza: tomando sobre si a
sorte dos profetas (21:39 23:34-36),
Jesus, Filho de Deus, assume o pecado de Israel infiel à Aliança.
Salva-o, ao mesmo tempo, pois se denuncia sua caducidade como povo particular,
abre-o à universidade eclesial. A afirmação de Jesus: “O Reino de Deus
vos será tirado e confiado a um povo que produza seus frutos” (21:43) anuncia a
entrada na Igreja dos pagãos que acatam a gratuidade da salvação. Ao mesmo
tempo, Jesus julga o Israel perseguidor (10:22-23 22:7
23:35) com carinho e faz-lhe ver sua recusa e a esperança de uma
conversão (23:37-39).
A instituição
eucarística, da qual Jesus faz sinal de seu sofrimento e sua morte, dá à
aliança sua forma definitiva e seu significado decisivo em “o sangue do
inocente”(27:4) “derramado por muitos para o perdão dos pecados”(26:28). A
paixão de Jesus justifica a existência do Israel realizado, da qual a
comunidade de Mateus faz parte. O centurião e os soldados do Calvário lhe são
as primícias: no meio da assembléia dos santos ressuscitados, ele confessam a
divindade de Jesus, cuja morte aparece, em Mateus, como uma “teofania”, uma
aparição de deus (27:51-54). O Messias de Israel torna-se assim a esperança
das nações (12:21), realizando “a Galiléia das nações”(4:15); é da Galiléia,
com efeito, que os discípulos partem, no final do evangelho (28:16-20), para a
missão universal.
O MESTRE TRAZ O REINO DOS CÉUS
Como autêntico Messias,
cumprindo a expectativa de Israel, Jesus traz a todos os homens “o Reino dos
Céus”. Este último aparece como força de cura e proclamação de uma mensagem de
felicidade (4:23 9:35). Os “milagres”,
ou antes, os “gestos de poder” de Jesus apresentam-se como sinais de sua missão
(9:33 11:2,6 19:15,31). Ele próprio age como Servo
obediente que executa a vontade salvadora de Deus, encarregando-se das
enfermidade e das fraquezas dos homens (8:17). Ele usa de doçura e de piedade,
atento em aliviar os seres sofredores e desprezados, e , mais ainda, em perdoar
os pecados (1:21 9:2).
O ADVENTO DO FILHO DO HOMEM
Com Jesus, o Reino dos Céus aproximou-se do homem
(3:2 4:17). Esse Reino cresce como uma
semente (13:4-9) que abre caminho através do joio (13:24-30) e torna-se árvore
frondosa. O termo deste crescimento é a “parusia”
do filho do Homem (24:3,27,37,39), feliz entrada na história humana da
misteriosa personagem de Daniel 7:13, tornada carne em Jesus, o Rei-pastor,
juiz e salvador das nações (25:31-46). Inaugura, então, o Reino definitivo
de Deus: através de sua morte e ressurreição, Jesus dá início aos últimos
tempos (24:42,44). Daí em diante, a cada momento, no terreno da história onde a
vigilância dos homens deve desenvolver-se, o Filho do Homem vem em seu Reino. No fim do
mundo, o Reino do filho se identificará com o do Pai (13:41-43).
Para Mateus, o Filho
do Homem é realmente o Filho do Deus Vivo. Antes de tudo, ele evoca a
concepção virginal do Cristo (1:16,20), operada pelo Espírito santo; depois, a
sua entronização messiânica no batismo, quando a voz do pai proclama a todos: “Este
é o meu Filho Amado”(3:17). O hino de júbilo e louvor (11:25-27) realça a
consciência que Jesus tem de sua filiação divina; esse aparece nas relações com
seu Pai e na discussão sobre a identidade do Messias, Filho de Davi
(22:41-45).
2
- A IGREJA DO SENHOR JESUS
Os cinco grandes
discursos de Jesus desenham o perfil da vida em Igreja. Essa encontra-se reunida (10:1),
instituída (16:18) e enviada (28:19-20) por Cristo. Por sua inserção no quadro
da atividade histórica de Jesus, os discursos provam que é ele a regra viva e
única do comportamento dos discípulos.
O ESPÍRITO DA COMUNIDADE
Os cristãos devem ser
pessoas felizes, convidados a descobrir, no fundo das situações exteriormente
menos favorecidas, uma plenitude nova: aquela que Jesus Cristo vive e da qual
dá-lhes compartilhar. Essa é a mensagem primordial, a das “bem-aventuranças”
(5:3-10); nela devemos ver um apelo para ir avante em vez de um conselho à
resignação. A promessa feita em cada uma das bem-aventuranças diz respeito ao Reino
de Deus, já presente pela vinda de Jesus (5:3,10), mas continuamente por
receber, como realização definitiva (5:4-9).
A “justiça” reclamada por Jesus (5:20,47) radicaliza as atitudes
ordenadas pelo Lei e instaura novas relações fraternas no seio da comunidade.
Exortando seus discípulos a promover o acolhimento mútuo e a reconciliação, a
fidelidade conjugal e o respeito ao lar alheio, a verdade no diálogo, a
benevolência humilde e generosa diante dos aproveitadores e mal-intencionados,
e sobretudo o amor aos inimigos, Jesus parece prescrever-lhes uma perfeição
impossível; convida-os a imitar a própria perfeição do Pai celeste. Com efeito,
o essencial desses preceitos repousa na pessoa de Jesus e na revelação que ele
faz de Deus; o agir de seu Pai, que se torna nosso Pai, é apresentado como modelo
da ação do discípulo. Mister se faz, então, que a própria força de Deus
permita-lhe realizar este impossível, sem diminuir-lhe a responsabilidade da
conduta, pela qual será finalmente reconhecido (12:23) e julgado (7:23 25:40,45).
O SERVIÇO MISSIONÁRIO
A comunidade reunida por
Jesus é automaticamente missionária, pois a missão nada mais é do que a
participação do discípulo na ação do Mestre (10:24-25). As condições do
testemunho prestado pelos enviados juntam-se à mensagem das bem-aventuranças:
como seu Mestre, o discípulo terá de sofrer, mas o espírito de Jesus é
prometido ao perseguido (10:20 12:28); o
enviado é mensageiro da paz, mas nem sempre bem acolhido, e sua vinda será, por
vezes, sinal de contradição. As lutas que, em nome de Cristo, colocam os irmãos
em oposição (10:35-36), anunciam uma paz superior que nasce dolorosamente
através da longa história do choque das liberdades humanas (24:8).
A TEOLOGIA DE MARCOS
É interessante observarmos
que Marcos sustenta um tipo de “economia
da revelação”. A confissão de Pedro marca-lhe a vertente. Antes dela, Jesus
ao mesmo tempo se revela como Messias e exige ciosamente o segredo desse fato
(1:34,44 3:12 5:43 7:36
8:26), revelação e segredo que atingem seu ponto culminante na
confissão de Pedro (8:29-30). Por outro lado, os discípulos nada entendem do
mistério de Jesus (4:41 6:51 8:16-21).
Depois da confissão
messiânica, os discípulos continuam a mostrar a fraqueza de sua fé (9:18),
mas o tema de sua ininteligência se concentra daí em diante na sorte de Jesus,
e não mais apenas em sua missão (8:32). Se a menção do filho do homem já foi
feita em 2;10,28, tratava-se então de seu papel terrestre. Enfim nenhum segredo
é exigido do cego de Jericó que proclama em Jesus o Filho de Davi (10:46-52).
Em contraprova, a intenção de Marcos poderia se confrontada com a de Mateus.
Este antecipa a liberdade de proclamação em Mt.9:27 12:23
1:22 14:33. Segundo Mateus, Jesus
assume antes da confissão de Pedro seu papel escatológico.
Marcos parece, portanto,
ter querido distinguir na revelação do evangelho dois períodos: o mistério
do Messias e o do Filho do homem - sendo que o segundo aprofunda o
primeiro.
Examinando-se os
pormenores, é claro que muitos matizes podem ser apresentados e uma dúvida
razoável subsistirá sobre a intenção última de Marcos. Por exemplo, pode-se
perguntar se os milagres da mulher sírio-fenícia e do surdo-mudo (7:24-37)
devam ser vinculados à primeira ou à segunda multiplicação dos pães; se a
confissão de Pedro (8:27-30) é somente conclusão da primeira parte ou
introdução à segunda; se a discussão sobre a autoridade de Jesus (11:27-33)
deve ser unida às três controvérsias que seguem. Ao contrário, parece mais
seguro afirmar que os três anúncios da Páscoa anunciam teologicamente o início
da segunda parte; isto explicaria como os matizes topográficos (9:30,33 10:1)
tenham sido absorvidos na apresentação catequética da passagem. Quando muito,
pode-se ver na “subida a Jerusalém”(10:32) o suporte topográfico que, em Lucas
tomará valor teológico.
PERSPECTIVA DOUTRINAL
A moda crítica falou
outrora do “paulinismo doutrinal de Marcos”. Loisy, por exemplo, via no
segundo evangelho uma “interpretação paulina... da tradição primitiva”. Mas,
pouco depois, A. Schweitzer e M. Werner mostravam que não se podia reconhecer
em Marcos o vestígio de uma influência doutrinal de Paulo. As idéias paulinas
características estão ausentes, somente os temas do Cristianismo primitivo
aparecem.
O vocabulário sugere,
quando muito, que Marcos viveu num meio paulino e talvez tenha conhecido I
Tessalonicenses e Romanos. Mas o vocabulário da justiça, da prova, da salvação
aí não se encontra. Por outro lado, ao contrário, o final canônico posterior de
Marcos 16:9-20 apresenta numerosos contatos com as cartas paulinas.
JESUS, O FILHO DE DEUS
O título do livro fixa a
intenção de Marcos : “Começo do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”.
Eis como Jesus mostra que é o Filho de Deus. alguns manuscritos não trazem
estas últimas palavras, mas sólidas razões de crítica textual autorizam a sua
retenção.
Contrariamente a Mateus,
que semeia com abundância o epíteto de Filho de Deus, Marcos reserva seus
efeitos, porque se trata provavelmente para ele do título teológico. Além da
confissão do Filho de Deus pelos demônios num relato (5:7) e um sumário (3:11)
, a expressão se encontra nos pontos culminantes do evangelho : pela voz de
Deus no batismo (1:11) e na transfiguração (9:7), enfim na boca do centurião
que , em nome dos pagãos, proclama a eficácia da morte de Jesus:
“Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus” (15:39). O segundo evangelho
quer, portanto, revelar aos pagãos a boa nova: Jesus Cristo é o Filho de
Deus, no sentido próprio e não somente no sentido messiânico.
Esta sobriedade na
apelação de Filho de Deus se reflete no uso dos outros títulos. Habitualmente,
trata-se de Jesus (81 vezes), nunca de Cristo Jesus, e de Jesus Cristo comente
em 1:1 e 16:19. O termo Cristo não se encontra nunca na boca de Jesus e
deve permanecer sigiloso (8:29). Os títulos de Filho de Davi (10:47 e
12:35), de Profeta (6:15 8:28), de Senhor (11:3 7:28) são excepcionais.
Correntemente, Jesus é
chamado de Mestre, mas o título que
Jesus reivindica é o de Filho do Homem, e isto nos introduz mais adentro
na mensagem característica do segundo evangelho.
JESUS,
O FILHO DO HOMEM
O evangelho é um “apocalipse”, porque a vinda do Senhor
é um mistério. Mateus o apresenta sob o aspecto do Reino dos Céus;
Marcos o concentra sobre a figura de Jesus, que é o Reino em pessoa. tudo
converge em Marcos para o mistério do Filho do Homem.
Segundo a primeira
interpretação, tomada, por exemplo, por Lagrange, Filho do Homem não seria um
título messiânico corrente; a passagem das Parábolas de Henoc que fala disto
seria uma interpolação cristã. A expressão deveria ser relacionada à tradição
de Ezequiel. Ela equivaleria a “o homem que sou, para atrair a atenção sobre
sua pessoa, sem tomar abertamente, e por assim dizer, oficialmente, o título de
Messias”. Somente o contexto evidente de glória em 13:26 e 14:62 estabeleceria
uma ligação coma profecia de Daniel.
A
TEOLOGIA DE LUCAS
Na literatura do Novo
Testamento, por muitas razões, a obra de Lucas é original.
Enquanto Mateus, Marcos
e João se concentram, aparentemente, apenas na vida de Jesus, Lucas divide seu
trabalho em dois volumes, o evangelho e os Atos; distingue, assim, com maior
clareza, o tempo de Jesus e os primórdios da Igreja.
Desde a primeira frase,
Marcos tem o “evangelho” como
referência de seu projeto literário. Mais modestamente, Lucas declara fazer um
“relato” de tudo o que se passou.
Lucas é o mais grego dos
autores do Novo Testamento. Maneja com certa elegância a língua comum falada
então; preocupa-se em ser compreendido pelos ouvintes poucos afeitos às
tradições judaicas; o leitos ocidental moderno sente-se logo a vontade em sua
companhia.
A delicadeza de Lucas
foi sempre realçada. Poetas como Dante apresentaram-no como o evangelista da
“mansuetude de Cristo”; pintores, como Rembrandt nele encontraram fecunda
fontes de inspiração. Relatos como o do filho pródigo ou dos discípulos de
Emaús ficaram bem retidos na memória dos cristãos, e todos os movimentos do
despertar religioso ao longo dos tempos, a começar pelas ordens religiosas
procuraram um modelo na descrição da primeira comunidade em Jerusalém.
A VIDA DE FÉ
De Lucas 9:51 a 13:21,
caso façamos uma subdivisão neste ponto, o evangelista orienta a atenção dos
leitores para a vida de fé: que
significa tornar-se discípulo? Que conduta adotar para permanecer neste estado
? Alguns temas fundamentais da fé e da ética lucanas aparecem: a pertença a
Deus e a seu Cristo como uma atitude de ruptura (abandono da família , de seus
bens, de seus privilégios sociais etc.); uma vida de crença marcada pela oração
e pela confissão de fé; a obediência que contrasta com a dos fariseus; esta
obediência é caracterizada pela confiança unicamente em Deus e pela vigilância.
Não se trata de vidas mais ou menos morais, mas da vitória de Satanás ou de
Deus (10:18), de vidas prisioneiras do Diabo (13:16) ou submissas a Deus, um
Deus que não é o justiceiro, mas o Deus atento cuja benevolência foi revelada
aos humildes. Existe, pois, um contraste, uma oposição, entre aqueles que
aceitam a mensagem e os que a rejeitam: “Pensais que vim estabelecer a paz
sobre a terra? Não, eu vos digo, mas uma divisão”(Lc.12:51). Jesus é o sinal
eficaz do amor de Deus. Para representar o Pai, Lucas coloca o Filho em cena. Os discípulos e os
fariseus representam os crentes e os incrédulos.
Mas, para que esta
manifestação do Reino chegue aos homens, urge haver intermediários : Jesus,
primeiro, os Doze a seguir, depois os Setenta e dois cujo apelo e missão abrem
esta parte do Evangelho (Lc.10:1-11). É
significativo que Lucas conceda um lugar privilegiado a essa missão: o discurso
de envio que a Coleção de Logia
associava ao mandato dos Doze, é por Lucas ligado à expedição dos Setenta e
dois. A missão dos doze prefigura a evangelização de Israel, enquanto a dos
setenta e dois antecipa a vocação universal dos gentios, bem encaminhada no
tempo do evangelista. Se ele dá uma atenção discreta à primeira, atribui uma
importância decisiva à segunda.
A
TEOLOGIA DE JOÃO
MUDANÇAS
DE PERSPECTIVA
Um certo número de dados
que ocupavam um lugar capital nos evangelhos sinóticos são no quarto evangelho
como que relegados para o segundo plano ou transformados. É assim que o anúncio
do Reino, tema fundamental da pregação de Jesus nos sinóticos, não aparece em
João senão uma ou duas vezes: 3:3-5 e também 18:36. Ele é substituído pelo tema
da vida, conhecido aliás já dos sinóticos que estabelecem a equivalência
entre “entrar no Reino” e “entrar
na vida” (Mc.9:43 10:17 Mat.18:3
19:17 Lc.18:29-30). Mas, enquanto
neles a vida é sempre um bem puramente escatológico (salvo em raras passagens
como Lc.15:32), no quarto evangelho, ao lado de passagens em que a palavra
“vida” conserva este sentido, há um grande número de outras em que ela constitui
um bem divino possuído desde agora.
Os sinóticos nos
oferecem todo um conjunto de ensinamentos morais sobre as condições de entrada
ou de existência no Reino: a pureza de intenção, a prece, o jejum, a esmola, a
castidade, a fidelidade conjugal, o desapego das riquezas. No quarto evangelho,
Jesus fala, sem dúvida, da necessidade de guardar os mandamentos, mas ele não
se explicita sobre nenhum ponto particular. Toda a moral de Jesus é relacionada
ao mandamento do amor fraterno inculcado com grande instância
(13:34-35 15:12 17:17-26). É claro, aliás, que as bases desta
poderosa unificação se encontram nos sinóticos.
ESCATOLOGIA
Outra modificação de
grande importância: o recuo incontestável no quarto evangelho sob o ângulo
escatológico; nenhum trecho apocalíptico do gênero do apocalipse sinótico,
nenhuma menção da vinda do Filho do Homem sobre as nuvens, nenhuma
descrição das côrtes do juizo final. A manifestação da glória de Jesus
(1:14 2:11 11:4,40) , a salvação (5:24,27), o julgamento
(3:18,19) são parcialmente atualizadas. Contudo, o aspecto escatológico da
mensagem cristã não é rejeitado, e nada nos permite considerar como adições
adventícias ao texto primitivo as passagens sobre a ressurreição corporal do
fim dos tempos (5:28-30 6:39,40,44,54).
É que a mística de João não é absolutamente uma mística intemporal; ao modo dos
profetas e diversamente dos gregos, João conhece um progresso dos tempos,
progresso que, como nos sinóticos, é ligado à pessoa de Jesus. Apenas, muito
mais do que seus antecessores, ele acentua esta idéia de que no Cristo já se
encontra o cume ou o fim da história do mundo. Pela morte de Jesus, o mundo é
vencido e o príncipe deste mundo banido (12:31
16:33); eis porque esta morte é a “consumação” escatológica (19:30).
A CRISTOLOGIA
Nos sinóticos como se
disse acima, o anúncio do Reino ocupa um lugar considerável; ligado ao Reino de
Deus, a pessoa de Jesus não é esquecida (Mt.11:26-30), mas não tem tanto lugar
na pregação; um segredo até a envolve, e Cristo proíbe aos demônios (Mc.1:24) e
também aos discípulos (Mc.8:30) de desvendarem sua identidade. Em João, ao
contrário, é a revelação da personalidade divina do Salvador que aparece
por toda a parte em primeiro plano; aqui nada de parábolas do Reino, mas duas
parábolas-alegorias (o bom pastor e a vinha) relativas a esta revelação. O
argumento principal do quarto evangelho, que será exposto, na síntese
doutrinal, é , com efeito, este: que o Filho de Deus encarnado foi
enviado pelo Pai aos homens para lhes revelar e lhes comunicar as riquezas
misteriosas da vida divina.
É na igreja que estas
riquezas lhes serão ofertadas. Na mesma medida em que o evangelho é
cristológico ele é também eclesial. O ministério público de Jesus, com sua
pregação e seus milagres, é apresentado como uma antecipação da vida da igreja,
que santificará as almas pela palavra. Por sua vez, a existência da igreja é
contemplada como uma antecipação da parusia.
A despeito desta
importante mudança de perspectiva, o Cristo do quarto evangelho não é
essencialmente diferente do Cristo dos sinóticos. Certamente, João sublinha a divindade
de Cristo muito mais vigorosamente do que seus precursores; mas também
entre eles é por toda a parte insinuada, a tal ponto que os sinóticos ficam
ininteligíveis sem esta crença. O título enigmático de Filho do Homem,
verdadeiramente próprio de Jesus e que não foi divulgado pela pregação cristã
ulterior, é comum nos sinóticos e em João. Somente que João insiste mais sobre a
transcendência e a preexistência do Filho do Homem; tende além disso a atenuar
a distância entre seu estado terrestre e sua condição gloriosa: a paixão é
mantida, mas , compreendida como o começo da glorificação, não apresenta mais
aqui o caráter de humilhação sublinhado nos sinóticos.
CONCLUSÃO
Mateus apresentou Jesus
como o Rei que, em princípio, era dos judeus, mas estes o rejeitaram. Marcos
mostrou o Jesus Servo, em toda a humildade. Lucas o apresenta como homem. Cada
um desses ângulos é de fundamental importância para entendermos a revelação de
Deus em Cristo.
Entretanto, João ultrapassou todas essas facetas messiânicas.
Ele proclamou, acima de tudo, a divindade de Cristo. Jesus é apresentado no
quarto evangelho como Filho de Deus. Tal título vai além de Filho de Davi ou
Filho do Homem. Cada um desses nomes apresenta uma verdade acerca do Senhor e
pode também significar pontos de vista que se possa ter sobre sua pessoa.
Porém, nenhuma idéia a seu respeito será completa até que ele seja reconhecido
como Deus e como Senhor. Quem chega a esse ponto, alcançou o objetivo dos
evangelhos, que é apresentar o Pai através do Filho.
BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
À BÍBLIA
EVANGELHOS
SINÓTICOS E ATOS DOS APÓSTOLOS
J.Auneau
/ F. Bovon
Edições Paulinas
BÍBLIA
SAGRADA
Versão de João Ferreira de Almeida - Revista
e Corrigida
Imprensa Bíblica
Brasileira